Artigo: Precisamos falar sobre a doença falciforme

Por Rodney Lucas Vieira de Souza e Alberto Bastos Balazeiro

Em 2008, a Organização das Nações Unidas instituiu o dia 19 de junho como o "Dia Mundial de Conscientização Sobre Doença Falciforme".

Reconhecendo a importância do tema e sua relevância também para as relações trabalhistas, o Ministério Público do Trabalho realizou, em 2018, uma audiência pública, buscando elevar seu conhecimento sobre as dificuldades dos doentes falciformes quanto a sua inserção no mercado de trabalho e gozo dos direitos sociais.

Trata-se da patologia genética mais comum do mundo, e que afeta milhares de brasileiros. É um grave problema de saúde pública no Brasil, dado o alto grau de incidência na população.

A pessoa que tem a doença falciforme possui uma alteração genética e, portanto, a sua medula óssea não produz hemoglobina de forma adequada, dando causa a manifestações clínicas muito graves como anemia, palidez, olhos amarelados, crises de dor moderada a severa, fadiga extrema, úlceras nas pernas, lesões em órgãos e tecidos, sequelas permanentes, AVCs etc. O constante receio de morrer de forma imprevisível faz parte da rotina de um doente falciforme. Há casos de jovens que já sofreram mais de uma centena de internações hospitalares antes dos 18 anos de idade. Os impactos na qualidade de vida são muito severos.

Há cerca de 30 anos a expectativa de vida de um indivíduo com doença falciforme restringia-se à adolescência. Com a criação do Programa de Atenção Integral à Pessoa com Doença Falciforme e alguma evolução no tratamento, principalmente depois da introdução da Hidroxiureia, pessoas com formas mais graves da patologia estão atingindo idades mais avançadas, o que aumenta a problemática relacionada a sua inserção social, trabalho, renda, educação, saúde, benefícios assistenciais e previdenciários. De 1973 até os dias atuais, a expectativa de vida dos pacientes aumentou de 14 anos para uma média de 45 anos, deixando de ser uma doença letal da infância para se tornar uma doença crônica, embora grave e de longo termo. Contudo, a mortalidade ainda é muito grande, especialmente na primeira infância.

O Ministério da Saúde presume que 4% da população brasileira tenham o traço falciforme, situação em que a pessoa não tem sintomas mas pode gerar um filho com a doença, e que de 25.000 a 50.000 pessoas tenham a doença em sua forma grave. No Estado da Bahia, calcula-se que haja uma criança com doença falciforme para cada 650 nascidos vivos.

Esse quadro não contribuiu, entretanto, para uma maior discussão quanto a políticas de inserção social dessas pessoas diante do aumento de sua expectativa de vida. É impressionante a invisibilidade dos pacientes, em sua maioria negros e pobres, quando o tema envolve políticas afirmativas de direitos, notadamente no que toca à sua inserção do mundo do trabalho.

Doentes falciformes, em geral, não são pessoas muito competitivas no mercado de trabalho. Em virtude das limitações físicas e das imprevisíveis ausências ao trabalho causadas pelas crises de dor, os falcêmicos não conseguem um emprego quando expõem que têm a doença, ficando limitados a pequenos serviços autônomos, subempregos informais ou ocupações permitidas por familiares que tenham algum comércio, em funções que exijam baixa qualificação profissional. Quando escondem a patologia para obterem a ocupação, os relatos evidenciam que são demitidos após a primeira crise dolorosa com ausência ao trabalho. Além disso, as mães de falcêmicos deixam de trabalhar para se dedicar aos cuidados permanentes com os filhos doentes. Para agravar a situação, muitos casais se separam diante dessa difícil realidade.

Outros aspectos também contribuem para a baixa empregabilidade dos doentes falciformes.

É comum o desconhecimento de profissionais da educação sobre a doença. Crianças em idade escolar com doença falciforme necessitam ser mais bem compreendidas. A importância da hidratação constante para evitar as crises aumenta a necessidade de idas ao banheiro. Houve relatos de que os professores não permitem a saída das crianças durante as aulas e há casos em que elas acabam por urinar nas próprias roupas. Isso fere a sua dignidade, expõe-nas ao ridículo perante colegas e causa-lhes resistência em frequentar a instituição de ensino.

A inexistência das classes hospitalares determinadas na legislação é outro fator que prejudica a criança, já que as suas múltiplas internações atrasam a conclusão dos estudos e comprometem a futura competitividade. Há, ainda, o problema relativo à negativa de repetição de provas em razão das ausências acarretadas pela patologia.

A par disso tudo, foram relatados diversos conflitos entre médicos e pacientes em unidades de urgência, por falta de obediência dos profissionais de saúde aos protocolos já estabelecidos para o atendimento do doente falciforme. É imperioso que as residências em clínica médica e pediatria sofram ajustes para aprofundarem o estudo sobre a doença genética mais comum no país, de forma a trazer uma melhor relação médico-paciente em longo prazo.

Embora essas barreiras sejam muito evidentes, muitos pacientes encontram dificuldades para serem reconhecidos como pessoas com deficiência e, assim, os seus direitos são sonegados pelo Estado e pela sociedade.

A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – nº 13.146/2015 - não trata mais a deficiência como uma qualidade ou característica do indivíduo, mas um conjunto complexo de situações, dentre elas um impedimento de longa duração que, aliado a uma série de barreiras, obstrui ou pode obstruir a participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

Dentre as barreiras citadas na legislação que qualificam a deficiência, encontram-se as "barreiras atitudinais", que são aquelas criadas pelo ambiente social. Assim, a conexão entre uma doença grave, debilitante, crônica e as barreiras construídas pela sociedade necessita ser compreendida como um impedimento caracterizador de deficiência, já que restringe a plenitude de integração do falcêmico na vida social e no meio ambiente de trabalho.

Há muitos anos, o Brasil vem reunindo especialistas visando à criação de um mecanismo de avaliação de deficiência adequado para o país. A esperança está em que o Comitê criado pelo Decreto nº 8.954, de 10 de janeiro de 2017, efetivamente elabore um instrumento que apure adequadamente a deficiência nos pacientes com doença falciforme e traga justiça social a essa parcela da população brasileira.

Para isso, definitivamente, precisamos falar sobre a doença falciforme. Não há mais espaço para tanta invisibilidade.

Rodney Lucas Vieira de Souza e Alberto Bastos Balazeiro são procuradores do Trabalho

Fonte: Tribuna da Bahia - https://www.trbn.com.br/materia/I18824/artigo-precisamos-falar-sobre-a-doenca-falciforme

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