A independência funcional e o modelo harmônico do Ministério Público brasileiro

Por Maurício Correia de Mello, Corregedor-Geral do Ministério Público do Trabalho

O modelo de Ministério Público brasileiro não se limita à área criminal. Ele pretende ser um instrumento garantidor dos diversos direitos constitucionais. Certamente, pode haver conflito entre o interesse dos governantes, ou mesmo do governo, e o interesse público, que abrange os princípios constitucionais formadores do patrimônio legal dos cidadãos, inclusive os direitos humanos. Assim, como nem sempre a população pode, por si só, agir para garantir os direitos constitucionalmente assegurados, essa função coube também ao Ministério Público (MP).

Contudo, é curioso que tal leque de atribuições contrarie diretrizes das normas europeias para o Ministério Público, que consideram o risco de se conceder poderes excessivos ao órgão. A Comissão Europeia para a Democracia pelo Direito, órgão do Conselho da Europa, recomenda que o MP tenha apenas atribuição penal ou, quando muito, a de defensor do interesse de crianças e adolescentes.

O temor dos europeus decorre da experiência soviética chamada de Prokuratura. Na época, esse órgão estava subordinado diretamente ao "Soviete Supremo", o poder legislativo soviético. Dessa forma, além da acusação penal, incumbia ao Ministério Público a defesa de todo o arcabouço ideológico do estado totalitário que vigorava na extinta URSS.

Quando o Congresso Constituinte de 1988 definiu o modelo de Ministério Público brasileiro, colocou-o como órgão essencial à defesa dos direitos constitucionalmente assegurados. Para a efetividade dessa defesa, instituiu-se o princípio da independência funcional. Na Europa há, basicamente, o modelo adotado por França e Alemanha, o qual submete o MP a uma relação de dependência com o

Poder Executivo, e o da Itália e Portugal, em que há uma tendência a garantir uma atuação mais independente da instituição. Entretanto, o maior grau de independência desses dois países não se compara à experiência brasileira, que considera cada membro do MP um órgão.

Nos países europeus vigora o princípio da "dependência hierárquica". Pode haver maior ou menor autonomia em relação ao Poder Executivo, mas, em qualquer situação, a regra é os procuradores da República serem subordinados ao procurador-geral. No mínimo, eles devem seguir estritamente as orientações estabelecidas por órgãos superiores, tendo muito pouca liberdade na sua atuação individual.

Mesmo que a Constituição de 1988 tenha consolidado a independência funcional, não existe princípio absoluto: ela deve ceder espaço a outros princípios quando necessário para a realização da missão do MP de guardião da ordem jurídica ou da legalidade, do regime democrático, dos direitos sociais e individuais indisponíveis ou dos direitos dos cidadãos e do interesse público. Além disso, o exercício da independência funcional precisa observar deveres e vedações dos membros.

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), criado em 2004 pela Emenda Constitucional n. 45, tornou-se instrumento de fortalecimento do princípio da independência funcional. De acordo com o Enunciado n. 6 do CNMP, de abril de 2009, "os atos relativos à atividade-fim do Ministério Público são insuscetíveis de revisão ou desconstituição pelo Conselho Nacional do Ministério Público". Esse entendimento prevalece em inúmeros julgados, nos quais se considera não haver falta disciplinar, mas pleno exercício da independência funcional.

Todavia, em 2013, o CNMP manifestou-se em caso concreto (Reclamação Disciplinar n. 0.00.000.001427/2009–71) no sentido de que "a independência funcional comporta limites. Se da atuação do promotor no Tribunal do Júri, ainda que no exercício de sua atividade-fim, resulta violação a deveres funcionais, é possível a análise da conduta no campo disciplinar". Nessa Reclamação, verificou-se que promotores de Justiça haviam desistido da oitiva de testemunhas, que seria de extrema importância para o deslinde da causa, e pugnaram pela impronúncia e absolvição do acusado por falta de provas — algo que o depoimento das testemunhas poderia ter suprido.

Nota-se que no pleno exercício da atividade-fim e no cumprimento dos deveres institucionais os atos dos membros são inatacáveis pelos órgãos disciplinares, seja a Corregedoria e o Conselho Superior local, seja a Corregedoria Nacional e o CNMP. Por outro lado, havendo omissão de dever, a consequência disciplinar é natural. A questão, contudo, não é tão simples. A estratégia da persecução penal e a análise da necessidade de atuação e da conveniência de se criar um precedente jurisprudencial desfavorável às teses do MP são exemplos de decisões que, com forte teor subjetivo, podem levar à impressão de uma aparente omissão.

O princípio da independência funcional não deve servir de escudo para a omissão dos deveres funcionais, o que também pode ocorrer se o trabalho desempenhado for de péssima qualidade. Mas a omissão deverá ser comprovada em processo disciplinar, assegurados a defesa e o contraditório que permitam a aplicação de eventual pena disciplinar. Alguns precedentes do CNMP sinalizam que a omissão não poderá dar-se em caso isolado, mas deve atingir parcela considerável de trabalho que configure desídia ou inércia.

É certo que não cabe aos membros exercer atividades político-partidárias. Trata-se de limite ao direito de cidadania, um dos valores fundamentais da República Federativa do Brasil, razão pela qual a interpretação desse conceito deve ser restritiva. Porém, verifica-se que projetos de lei e propostas de emenda constitucional têm sido objeto de livre apreciação e posicionamento por parte de membros do Ministério Público, mesmo quando ainda estão em discussão no âmbito do Poder Legislativo.

Notas técnicas têm sido emitidas por associações de membros em temas de grande repercussão, como redução da idade penal e da idade mínima para o trabalho, demarcação de terras indígenas, redução de áreas preservadas para utilização pelo agronegócio, terceirização, caracterização do trabalho escravo, entre muitas outras matérias de interesse social. Nessas discussões, por vezes, a sociedade ainda não compreendeu ou aceitou a posição do MP, o que não inibe os posicionamentos de procuradores e promotores no debate político. Todas essas manifestações visam claramente interferir na discussão interna do Poder Legislativo, modificando suas conclusões.

A Associação Nacional dos Procuradores da República, por exemplo, apresentou detalhada nota técnica sobre a reforma política, inclusive a partidária, posicionando-se expressamente contra a reeleição. A Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho segue uma agenda voltada para a defesa de direitos sociais que muitas vezes a coloca em situação de confronto com posições políticas de partidos que defendem a redução desses direitos. Também individualmente é comum a manifestação pública (em universidades, audiências públicas no Congresso Nacional, entrevistas, artigos jurídicos ou de opinião publicados na imprensa ou mídia eletrônica) de membros que se posicionam sobre os mais diversos temas.

A análise da jurisprudência revela que nenhum dos exemplos mencionados foi considerado excesso ou falta disciplinar pelo CNMP, ainda que não exista autorização legislativa ou constitucional expressa para esses posicionamentos técnicos que têm repercussão política não no sentido partidário, mas no sentido de exercício da cidadania. Pelo contrário, em pelo menos um precedente aplica-se a imunidade prevista no art. 41, inciso V, da Lei Orgânica do Ministério Público (Lei n. 8.625, de 1993), relativa à liberdade de opinião. Afirma-se nesse precedente que tal imunidade para o exercício do direito de externar opiniões decorre diretamente do princípio constitucional da independência funcional (Processo Disciplinar avocado N. 0.00.000.000074/2011–15).

Aparentemente, esse comportamento tem sido assimilado pelos órgãos de controle administrativos e judiciais. E parece razoável que seja assim. Afinal, se estivéssemos no modelo de "dependência hierárquica", conjugado com as amplas atribuições que detém o Ministério Público brasileiro, seria possível que este órgão tivesse excessivo poder. Seguiria um sistema autoritário como o modelo soviético, com desequilíbrio das forças políticas e resultante de partido único ou, no caso brasileiro, resultante da escolha do procurador-geral da República pelo presidente da República.

A ampla liberdade dos membros é antídoto para o autoritarismo do sistema de Prokuratura. Embora não possam exercer atividades político-partidárias, estão aptos para exercer a cidadania democrática, posicionando-se como cidadãos, com base em seu conhecimento técnico e sua experiência profissional, respaldados pelos valores e princípios constitucionais, em especial a defesa do regime democrático e dos direitos constitucionalmente garantidos.

Em conclusão, verifica-se que o modelo brasileiro parece conviver bem com o pluralismo de ideias. As amplas atribuições do MP para a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127 da Constituição Federal) devem estar acompanhadas dos princípios da unidade, da indivisibilidade e da independência funcional. A fiscalização das atividades funcionais e da conduta dos membros pode e deve ser exercida pela Corregedoria sem prejuízo desses princípios constitucionais, em especial o princípio da independência funcional, como vem decidindo o CNMP, sob orientação do Enunciado n. 6, de 2009, e de inúmeras decisões proferidas em casos concretos.

* Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU). Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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