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Artigo: A exploração sexual de crianças e adolescentes: responsabilização na esfera trabalhista pela prática de trabalho infantil

Por Luciana Marques Coutinho - Procuradora do Trabalho. Gerente Nacional do Projeto Políticas da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Coordinfância). Graduada em Direito.

Virgínia de Azevedo Neves - Procuradora do Trabalho. Mestra em Direito pela Universidade Católica de Brasília. Especialista Docente em Direito Processual Civil pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (AEUDF).

Resumo: O artigo aborda a exploração sexual de crianças e adolescentes; a caracterização dessa violação de direitos como uma das piores formas de trabalho infantil; a natureza da relação jurídica constituída entre as vítimas e seus exploradores; e a responsabilização na esfera trabalhista através da atuação do Ministério Público do Trabalho para integral reparação do ilícito.

Palavras-chave: exploração sexual infantojuvenil; trabalho infantil; repercussões trabalhistas.

Sumário:

1 Introdução.

2 Exploração sexual de crianças e adolescentes. Ilícito penal e trabalhista.

3 A relação jurídica de trabalho existente entre o(a) explorador(a) e a vítima. Consequências.

4 Conclusão.

1 Introdução - A exploração sexual de crianças e adolescentes submete as vítimas a diversas consequências danosas, especialmente agravos psicossociais e sociais, que deixam marcas indeléveis em suas vidas.

Trata-se de prática criminosa, bárbara e talvez a forma mais violenta de trabalho infantil.

De fato, o art. 3º, alínea b, da Convenção n. 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)[2] configura a exploração sexual de crianças e de adolescentes com fins comerciais, assim considerada “utilização, demanda e oferta de criança para fins de prostituição, produção de pornografia ou atuações pornográficas”, como uma das piores formas de trabalho infantil (BRASIL, 2019).

O trabalho infantil, em regra, é conceituado como realização de uma atividade exercida por criança ou adolescente, antes da idade e/ou fora das condições legalmente permitidas. Sem importar o local onde é prestado, será trabalho infantil aquele realizado em ambientes urbanos, rurais, domésticos ou em logradouros públicos, sendo os estabelecimentos formalmente constituídos ou não. Para fins de caracterização do trabalho infantil, é indiferente o tipo de labor exercido ou tempo efetivo de trabalho despendido, podendo ser contínuo, sazonal, eventual ou episódico. O trabalho precoce pode visar à obtenção de ganho para prover o sustento próprio e/ou da família e ser desempenhado com ou sem remuneração.
Todo o exposto acima se aplica à exploração sexual infantojuvenil, sendo a mercantilização sexual a nota distintiva para categorização da exploração como trabalho. A exploração sexual que configura trabalho infantil pressupõe necessariamente uma relação de mercantilização. Assim, para se enquadrar como trabalho, a utilização sexual de pessoas com menos de 18 anos deve ser sempre fruto de uma troca de cunho financeiro, embora não necessariamente de caráter pecuniário, podendo a remuneração ou o pagamento se constituir em favores, presentes, alimentos, drogas, abrigamentos e outros, ou, simplesmente, em mera promessa de qualquer pagamento.

Embora possa causar perplexidade a caracterização das atividades vinculadas ao exercício de práticas sexuais para a satisfação da lascívia de outrem como um trabalho, é importante rememorar que, no Brasil, o(a) profissional do sexo é reconhecido(a) na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO):[3] “CBO 5198-05 - profissional do sexo”. Sinônimos do CBO: “garota de programa”, “garoto de programa”, “meretriz”, “messalina”, “michê”, “mulher da vida”, “prostituta”, “trabalhador do sexo”.[4] A prostituição não é ilícita quando exercida por pessoas adultas de forma espontânea e em pleno gozo de suas capacidades:

No Brasil, estar em situação de prostituição não é crime. No entanto, o seu favorecimento ou indução (art. 228, CP), a sustentação financeira por meio da prostituição alheia (rufianismo, art. 230, CP) e a manutenção de casa de prostituição são delitos, conforme legislação criminal. (DE MORAES E SILVA, 2009, p. 76).

Tem-se, assim, que a atividade desenvolvida pelos(as) profissionais do sexo adultos(as) é reconhecida como trabalho e ocupação legítima. Dessa forma, se o ordenamento jurídico brasileiro admite que as atividades desempenhadas pelos(as) profissionais do sexo são consideradas como um trabalho, o fato de a ocupação ou atividade ser exercida por criança ou adolescente não altera essa condição. Será uma espécie de trabalho cruel, degradante e aviltante, mas, ainda assim, um trabalho.

É fundamental, porém, ressaltar que, no caso de exploração sexual infantojuvenil, o termo “prostituição” não pode ser utilizado, já que não é reconhecida às crianças e aos adolescentes a capacidade de consentir ou escolher participar dessa relação:[5]

É comum que os casos de exploração sexual sejam interpretados como prostituição infantil. Apesar de facilitar a compreensão, é um termo inadequado, pois crianças e adolescentes não se prostituem, mas são explorados, uma vez que eles não possuem condições de avaliar as implicações e consequências que existem ao se envolverem nessas situações. Ao falarmos em “prostituição infantil” ou “crianças e adolescentes que se prostituem”, estamos colocando todo o peso da situação nas ações deles, quando são os adultos que têm a responsabilidade de zelar pela preservação da integridade física e emocional dessas crianças e adolescentes. Crianças e adolescentes nunca são os responsáveis pela violência que sofrem, mesmo quando não se recusam a participar da violência. O que vemos cotidianamente é que a maior parte das pessoas não enxerga esse fenômeno, seja porque já o naturalizou ou porque não distingue na vítima uma criança ou adolescente que precisa de proteção. (BRASIL, 2020, p. 14).

Portanto, a utilização e o envolvimento de crianças e adolescentes na exploração sexual em quaisquer de suas modalidades (turismo sexual, “pornografia”, tráfico ou “prostituição”) sempre configurarão violência sexual, uma vez que não decorrerão de ato voluntário de suas vítimas. Crianças e adolescentes, pessoas ainda em formação, fragilizadas pela sua idade e condição social, jamais podem ser consideradas protagonistas e sujeitos ativos desse ilícito, mesmo porque são titulares do bem jurídico lesado.

2 Exploração sexual de crianças e adolescentes. Ilícito penal e trabalhista.

Como é sabido, essa prática configura crime, podendo ser citados para enquadramento penal os artigos a seguir do Estatuto da Criança e do Adolescente:

Art. 218-B. Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos.
§ 1º Se o crime é praticado com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.
§ 2º Incorre nas mesmas penas:
I - quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos na situação descrita no caput deste artigo;
II - o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifiquem as práticas referidas no caput deste artigo.
§ 3º Na hipótese do inciso II do § 2º, constitui efeito obrigatório da condenação a cassação da licença de localização e de funcionamento do estabelecimento. (Código Penal)
[...]

Art. 240. Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente: (Redação dada pela Lei n. 11.829, de 2008)
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. (Redação dada pela Lei n. 11.829, de 2008).

§ 1º Incorre nas mesmas penas quem agencia, facilita, recruta, coage, ou de qualquer modo intermedeia a participação de criança ou adolescente nas cenas referidas no caput deste artigo, ou ainda quem com esses contracena. (Redação dada pela Lei n. 11.829, de 2008)

§ 2º Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) se o agente comete o crime: (Redação dada pela Lei n. 11.829, de 2008)

I - no exercício de cargo ou função pública ou a pretexto de exercê-la; (Redação dada pela Lei n. 11.829, de 2008)
II - prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade; ou (Redação dada pela Lei n. 11.829, de 2008)
III - prevalecendo-se de relações de parentesco consanguíneo ou afim até o terceiro grau, ou por adoção, de tutor, curador, preceptor, empregador da vítima ou de quem, a qualquer outro título, tenha autoridade sobre ela, ou com seu consentimento. (BRASIL, 2008).

Ocorre que a categorização penal da conduta dos(as) exploradores(as) sexuais de crianças e adolescentes não gera dicotomia relativamente à caracterização de trabalho infantil, já que as perspectivas envolvidas, criminal e trabalhista, precisam ser igualmente consideradas. Do mesmo modo, a situação e, sobretudo, o tratamento jurídico do algoz e da vítima obviamente necessitam ser distintos.

Zéu Palmeira Sobrinho, ao discorrer sobre o combate ao trabalho infantil no tráfico de drogas, acentua com propriedade:

O trabalho infantil no tráfico é mal compreendido ao ser enfocado sob a perspectiva criminalizadora porque tal abordagem acaba por dissolver e negar a abordagem do fenômeno social em nome da supremacia do fenômeno jurídico-criminal. O trabalho sob a perspectiva sociológica é um fato, uma realidade inconteste, a despeito da forma que ele é tratado pelo direito, pela moral, pela religião etc. É nessa trilha que o trabalho é considerado toda atividade humana, tendencialmente onerosa, que envolve o dispêndio da energia humana e é reputada como meio de subsistência.

O trabalho envolve in concreto uma relação que, em regra, não se esvazia pelo simples fato de ser um ato que enseja a reprovabilidade moral. Um ser humano, seja ele adulto ou criança, não perde sua condição de trabalhador alienado se o que produz para outrem, de forma eventual ou contínua, é o meio para prover a sua subsistência. É nessa perspectiva que o Direito do Trabalho, sob a influência da sociologia e do realismo jurídico, adota os princípios da primazia da realidade e da irretroatividade das nulidades absolutas. (SOBRINHO, 2020, p. 574).

A despeito de o texto acima se referir ao trabalho infantil no tráfico de drogas, outra pior forma de trabalho infantil nos termos da Convenção n. 182 da OIT, o raciocínio desenvolvido pelo autor se aplica perfeitamente à exploração sexual infantojuvenil.

Ainda que a conduta do(a) explorador(a) seja considerada crime (no caso do tráfico, até a prática da própria vítima é enquadrada como análoga a um crime ou ato infracional), persiste a ocorrência de um trabalho resultado da exploração de criança ou adolescente, e é o quanto basta para haver repercussões na esfera trabalhista.

A submissão de crianças e adolescentes à objetificação sexual comercial é ignomínia que demanda a mais ampla reparação, não podendo ser excluída nenhuma esfera ou dimensão do dano ocasionado. Ao se configurar uma relação de trabalho, a exploração sexual infantojuvenil não será passível apenas de penalização criminal, mas também sujeita à responsabilização trabalhista.

Desse modo, a ilicitude das práticas e a capitulação penal não afastam a caracterização de exploração do trabalho de crianças e adolescentes para todos os fins trabalhistas. Do contrário, haveria uma penalização da própria vítima, alijada da reparação integral devida em razão da exploração ilícita e abominável de sua dignidade e da violação dos seus direitos fundamentais. Ademais, haveria uma recompensa ou benefício para o(a) explorador(a), que ficaria parcialmente impune, já que não responderia adequada e integralmente pelos delitos e pela violência praticada contra pessoas em desenvolvimento.

3 A relação jurídica de trabalho existente entre o(a) explorador(a) e a vítima. Consequências.

Uma vez configurado o trabalho infantil, resta definir a relação jurídica existente entre as pessoas que exploram e as crianças e os(as) adolescentes vítimas da exploração.

O trabalho prestado em benefício de outrem constitui uma relação social afetada e regulada pelo Direito: a relação de trabalho, ou seja, um vínculo no qual uma pessoa natural executa tarefa, atividade, obra ou serviço para outrem, pessoa natural ou jurídica, mediante ou com expectativa de retribuição.

Em regra, as crianças e os(as) adolescentes, vítimas do trabalho infantil, são envolvidos(as) na exploração sexual por ação de terceiros que podem ser seus responsáveis legais (pais, mães, parentes, cuidadores etc.), outros(as) intermediários(as) que aliciam, agenciam, favorecem ou são coniventes com a exploração ou, ainda, indivíduos que também se beneficiam dessa conduta de alguma forma, como, por exemplo, comercializando ou reproduzindo produtos advindos da exploração (tais como fotos, imagens, vídeos etc.).

Ainda que as práticas sexuais ocorram sem a intervenção de terceiros, a pessoa que se utiliza de criança e adolescente com fim de “comércio”,[6] visando à satisfação do prazer sexual pessoal, é considerada igualmente exploradora.
A relação de trabalho (exploração do trabalho) se forma, por conseguinte, entre a vítima e os(as) seus(suas) exploradores(as) diretos e/ou indiretos, passíveis de responsabilização cível, penal e trabalhista, variando apenas o grau e a intensidade dessa responsabilidade conforme o caso concreto.

Diante da constatação de uma relação de trabalho, é preciso verificar quais serão as consequências trabalhistas decorrentes. É sabido que a relação de trabalho se distingue da relação de emprego. A primeira é gênero da qual a segunda é uma de suas espécies.

Para que se configure a relação de trabalho lato sensu, bastará o exercício do labor em benefício de outrem para se estabelecer uma relação entre aquele(a) que aproveita e quem presta o trabalho. Essa relação de trabalho lato sensu, não empregatícia, pode ser de trabalho autônomo, representação comercial, empreitada, trabalho avulso, trabalho eventual e outras consoante as características específicas da prestação laboral.

Já na relação de emprego ou vínculo empregatício, exige-se a presença obrigatória de requisitos específicos, nos termos dos arts. 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho: onerosidade (existência de contraprestação para o trabalho prestado), pessoalidade (trabalho prestado intuitu personae), subordinação (dependência e direção da atividade pelo empregador) e não eventualidade (trabalho não episódico ou eventual).

A relação de trabalho lato sensu produz efeitos diversos da relação de emprego, mas certamente não é infensa à geração de consequências trabalhistas. É curial, inclusive, a existência de lides envolvendo trabalhadores sem vínculo empregatício e o tomador ou beneficiário dos serviços, como ocorre, por exemplo, em relação a estágio acadêmico, contrato de empreitada, trabalho avulso ou autônomo, em que se pleiteiam direitos diversos como o pagamento da prestação do serviço ou a indenização por eventual lesão ocorrida.

Por sua vez, o vínculo empregatício produz efeitos legais próprios dessa relação jurídica, como a necessidade de assinatura da carteira de trabalho e previdência social, pagamento de salário, férias, décimo terceiro, cumprimento de jornada diária e semanal de trabalho, recolhimento de Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), entre outros.

Pesa em desfavor das repercussões trabalhistas da exploração sexual de crianças e de adolescentes o argumento de que o objeto da relação de trabalho é ilícito. Isso porque os elementos jurídico-formais do contrato de trabalho não se distinguem do contrato civil, previsto no art. 104 do Código Civil, ou seja, capacidade das partes contratantes, forma contratual prescrita ou não defesa em lei, licitude do objeto do contrato e manifestação da vontade das partes.

Nesse sentido, a doutrina trabalhista estabelece que o objeto do contrato de trabalho deve ser lícito como pressuposto de validade da relação jurídica empregatícia (vínculo de emprego). Nessa trilha:

Extrai-se da doutrina que o Direito do Trabalho somente confere validade ao contrato de trabalho que possua de forma absoluta a presença de um objeto lícito. Enquadrando o labor prestado num tipo legal criminal, a ordem justrabalhista rejeita de pronto o reconhecimento jurídico da relação socioeconômica formada, negando-lhe qualquer repercussão de caráter trabalhista. Quanto ao conceito do termo de trabalho ilícito, é aquele “que compõe um tipo legal penal ou concorre diretamente para ele”, sendo, como exemplo, o caso dos “serviços prestados a uma quadrilha de traficantes de tóxicos”. (DA SILVA, 2011, p. 21).

Consolidando esse entendimento, a Orientação Jurisprudencial n. 199 (OJ-SDI1-199) da Seção de Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho (TST) estabelece em razão dos vínculos de prestação laboral para o “jogo do bicho”:
OJ-SDI1-199 JOGO DO BICHO. CONTRATO DE TRABALHO. NULIDADE. OBJETO ILÍCITO (título alterado e inserido dispositivo) - DEJT divulgado em 16, 17 e 18.11.2010. É nulo o contrato de trabalho celebrado para o desempenho de atividade inerente à prática do jogo do bicho, ante a ilicitude de seu objeto, o que subtrai o requisito de validade para a formação do ato jurídico.[7]

Essa posição consagrada na jurisprudência é utilizada para outras situações similares, envolvendo, inclusive, a prostituição e o trabalho no tráfico de drogas de adultos.

A análise dos julgados precedentes que fundamentaram a aprovação da orientação jurisprudencial acima transcrita no TST denota a preocupação do Poder Judiciário com a sagração de uma atividade ilícita (no caso, contravenção penal), que poderia advir de eventual decisão judicial que reconhecesse o vínculo empregatício decorrente dessa conduta. Nesse sentido, o trecho do acórdão proferido pelo TST no processo RR n. 307685, ano 1996, publicado no DJ de 16 de abril de 1999, um dos precedentes da OJ-SDI1-199:

[...] O jogo de bicho situa-se no rol das contravenções penais, capitulado no artigo 58 do Decreto-Lei 3.688/41.

Diante disso, torna-se inválido o contrato de trabalho celebrado entre as partes, ante a ilicitude do objeto, ensejando a nulidade absoluta do mesmo, atingindo inclusive a própria relação jurídica (artigo 82, do CCB).

Inexistindo relação de emprego, não há que se falar em qualquer consequência jurídica cuja apreciação caiba à Justiça do Trabalho, porquanto o reconhecimento de qualquer direito implicaria a “legalidade” de um ajuste celebrado em afronta à lei que proibiu o exercício da atividade. [...]

De outra parte, nos precedentes também se verifica a imputação da conduta criminosa às duas partes envolvidas na relação, o prestador e tomador de serviços e a provável injustiça decorrente do reconhecimento de vínculo empregatício para um trabalhador envolvido e partícipe da contravenção penal. Nesse diapasão, o precedente a seguir, ementa do acórdão proferido pelo TST no processo E-RR n. 258644, ano 1996, publicado no DJ de 17 de dezembro de 1999:
RELAÇÃO EMPREGATÍCIA - JOGO DO BICHO. Quem presta serviços em “Banca de Jogo de Bicho” exerce atividade ilícita, definida por lei como contravenção penal. Assim sendo, inexiste o contrato de trabalho em epígrafe, eis que ilícito o objeto e ilícitas as atividades do tomador e da prestadora dos serviços. Tal contratação resulta na inexistência de relação de emprego, bem como na inconsistência de qualquer pedido de natureza trabalhista. Ora, é inaceitável que o Judiciário Trabalhista avalize a prática contratual ora em tela, que se encontra em total desarmonia com os princípios legais que regem os contratos.

E, ainda, o trecho a seguir extraído do acórdão proferido no processo RR n. 403214, ano 1997, publicado no DJ de 21 de setembro de 2001, outro precedente da Orientação Jurisprudencial:

No art. 82 do Código Civil se estabelece, textualmente, que “a validade do ato jurídico requer agente capaz (artigo 145, I), objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei (arts. 129, 130 e 145)”.

In casu, foi consignado na decisão recorrida que o Reclamante exercia atividade ilícita, prevista no art. 58 do Decreto-Lei n. 3.688/41. Não há, portanto, contrato de trabalho regular, ante a ausência de requisito de validade do ato jurídico, qual seja a licitude do objeto. Em consequência, o Autor pretende o deferimento de pedido juridicamente impossível: reconhecimento de vínculo de emprego entre as partes em cujo contrato de trabalho se objetiva o exercício de atividade ilícita (art. 58 da Lei de Contravenções Penais).

Acresça-se, por demasiado, que o reconhecimento de existência de relação de emprego, na espécie, ensejaria injustiça ao trabalhador que, talvez também premido por necessidades semelhantes às do Reclamante, optou por trabalho honesto, em respeito à ordem social e jurídica. Assim, dar-lhes igual tratamento seria nivelar desiguais, o que também é forma de injustiça.

Entretanto, no caso da exploração sexual de crianças e adolescentes e para outras modalidades de trabalho infantil, os argumentos expostos acima e a posição cristalizada na OJ-SDI1-199 não podem ser usados, com todo respeito aos entendimentos contrários.

Como visto alhures, em regra, o Direito do Trabalho nega validade ao contrato de trabalho que tenha como cerne um objeto ilícito. Se o trabalho prestado se enquadra em tipo penal, não há possibilidade de caracterização de uma relação jurídica empregatícia. Porém, a doutrina reconhece que há, em tese, possibilidade de reconhecimento do vínculo de emprego em algumas hipóteses. Uma delas é na ausência da ciência e consciência pelo(a) empregado(a) da ilicitude do trabalho prestado. Conforme doutrina de Alice Monteiro de Barros:

[...] para essa vertente doutrinária, o importante é que o empregado seja consciente da ilicitude do trabalho. Dentro desse raciocínio, admite-se possa o trabalhador não ter conhecimento da ilicitude de seu trabalho, como no caso de empregado que exerce suas funções em escritório com fachada de empresa imobiliária, mas que, na verdade, dedica-se ao tráfico de mulheres. Ignorando as verdadeiras finalidades da empresa, temos que não se poderá arguir nulidade em detrimento de trabalhador de boa-fé. (BARROS, 2009, p. 250 apud DA SILVA, 2011, p. 22).

No mesmo sentido, Maurício Godinho Delgado:

A regra geral de negativa plena de efeitos jurídicos ao trabalho ilícito não esmorece a pesquisa em torno de algumas possibilidades concretas de atenuação do preceito geral enunciado. Duas alternativas destoantes da regra geral têm sido apontadas pela doutrina: a primeira, consistente na situação comprovada de desconhecimento pelo trabalhador do fim ilícito a que servia a prestação laboral perpetrada. A segunda alternativa consistiria na nítida dissociação entre o labor prestado e o núcleo da atividade ilícita. Para esta tese, se os serviços prestados não estiverem diretamente entrosados com o núcleo da atividade ilícita, não serão tidos como ilícitos, para fins justrabalhistas (exemplo: servente em prostíbulo). A comprovação de qualquer destas duas situações alternativas poderia ensejar, segundo tais concepções, a produção de efeitos trabalhistas ao prestador de serviços envolvido. (DELGADO, 2004, p. 501 apud DA SILVA, 2011, p. 23).

No caso de crianças e adolescentes explorados sexualmente, as vítimas são pessoas em desenvolvimento, jungidas à atividade ilícita por necessidade econômica ante a premência de subsistência e sobrevivência. Carentes de proteção, essas pessoas não podem sofrer as consequências advindas da prática ilícita de seus(suas) exploradores(as); afinal, quer em razão da sua idade, quer em razão da sua condição social, não possuem capacidade e discernimento suficientes para decidir sobre a venda de seus corpos a pessoas adultas em situação de supremacia de poder. Assim, os meninos e as meninas em situação de exploração sexual não são os sujeitos ativos dessa prática delituosa, mas sim vítimas das condutas ilícitas de outrem.

Negar, pela ilicitude do objeto, o reconhecimento à validade e aos efeitos dos vínculos de emprego nesses casos, quando provados todos os requisitos necessários para a configuração da relação empregatícia (onerosidade, subordinação, não eventualidade, pessoalidade), é impor pena e responsabilização às próprias vítimas da violência sexual.

Portanto, a exploração sexual de crianças e adolescentes deve ser enquadrada numa das exceções à regra geral de negação de efeitos jurídicos ao trabalho ilícito, seja porque não seria possível argumentar que a vítima tem consciência da ilicitude do trabalho, dada a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, seja porque tal ilicitude não pode ser imposta à vítima, já que não é partícipe de prática delituosa.

De qualquer forma, ainda que se entenda impossível a caracterização de vínculo de emprego entre o(a) responsável/beneficiário(a) do trabalho infantil e a vítima da exploração sexual, diante do objeto ilícito da relação laboral ou porque ausente a comprovação dos requisitos legais para caracterização da relação de emprego no caso concreto, há inegavelmente uma relação de trabalho resultante da exploração do trabalho infantil, o que, por si só, gera como consequência a necessidade de responsabilização trabalhista de todos(as) aqueles(as) que concorreram para essa abominável violação de direitos.

A busca pela consolidação do trabalho decente, que não admite a exploração da mão de obra de crianças e adolescentes em nenhuma de suas formas e modalidades, é missão dos órgãos de defesa e controle da esfera trabalhista – Auditoria-Fiscal do Trabalho, Ministério Público do Trabalho e Justiça do Trabalho –, tendo a responsabilização dos(as) exploradores(as), além de proporcionar reparação às vítimas e à sociedade, vilipendiadas pela conduta ilícita, efeito pedagógico importante para prevenir novas ocorrências dessa conduta abjeta.

Observa-se que a prática de exploração do trabalho humano e a coisificação do(a) trabalhador(a) é rechaçada com intensidade pelo ordenamento jurídico. O(a) trabalhador(a), ainda que adulto(a), não pode ser utilizado(a) como se mercadoria fosse. É por isso que práticas como a marchandage, que se traduz em comercialização do trabalho humano por intermediário, que contrata o(a) trabalhador(a) e vende sua mão de obra ao beneficiário final, bem como a escravidão ou as práticas análogas à escravidão são fortemente reprimidas pelo ordenamento jurídico. Essas últimas são enquadradas como crime previsto no art. 149 do Código Penal. Obviamente, nem se cogita afastar a reparação individual da vítima de escravização na esfera trabalhista em razão da categorização penal.

Aliás, dada a sujeição das vítimas a relações de poder em evidente disparidade de instrumentos de defesa, a exploração sexual de crianças e adolescentes as expõe à degradação, com submissão integral ao mando e controle do(a) explorador(a), e pode, em algumas hipóteses, configurar, até mesmo, trabalho infantil escravo. A consequência inevitável que exsurge é a necessidade de responsabilização trabalhista à altura do dano e da violação dos direitos dessas vítimas por meio de ações ajuizadas perante a Justiça do Trabalho.

Nesse sentido são os precedentes do Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. EXPLORAÇÃO SEXUAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES. ILÍCITO TRABALHISTA. CONFIGURAÇÃO. Verificadas as condutas ilícitas praticadas pelos réus por meio da prática de atos libidinosos e de caráter sexual contra menores, mediante pagamento em dinheiro ou produtos, resta configurada a hipótese de efetiva exploração sexual caracterizadora de relação de trabalho, merecedora de punição por esta justiça especializada. A repressão à exploração sexual da criança e do adolescente manifesta nítido interesse social, e a sociedade não pode nem deve ficar indiferente a uma das piores formas de violência perpetradas contra estes menores, traduzindo-se, por isto, numa grave questão humana, capaz de macular toda a coletividade, gerando um dano de alcance coletivo, cuja repressão tem bases constitucionais (artigo 5º, V e X), inclusive na proteção à dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CF). Recurso do parquet provido. (Grifos nossos).[8]

EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. RESPONSABILIZAÇÃO POR DANO MORAL COLETIVO. EXPLORAÇÃO DO TRABALHO SEXUAL DE ADOLESCENTES. ILÍCITO TRABALHISTA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. Em se tratando de Ação Civil Pública que persegue a responsabilização por dano moral coletivo, em decorrência da exploração do trabalho sexual de adolescentes, a competência é da Justiça do Trabalho. Inteligência do Decreto 3.596/2000, ratificador da Convenção 183 da OIT. DANO MORAL COLETIVO. LESÃO À SOCIEDADE. PROSTITUIÇÃO INFANTIL. PROVA TESTEMUNHAL SUFICIENTE. Constatada a participação de alguns dos réus no esquema de prostituição infantil, é de ser imposta a condenação correspondente. INQUÉRITO POLICIAL. PROVA DESCOMPROMETIDA COM O CONTRADITÓRIO. DEPOIMENTO NÃO CONFIRMADO NA ESFERA JUDICIAL. No contexto da prova, o processo coletivo, que tem conteúdo objetivo, aproxima-se do penal. A teor do art. 155 do CPP, o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, seja aquela advinda do inquérito policial, seja a produzida no inquérito civil público, ainda mais quando, por ocasião dos depoimentos na esfera judicial, as testemunhas deixam de confirmar as alegações outrora firmadas por ocasião da oitiva policial.[9]

Essa última decisão foi confirmada pelo colendo Tribunal Superior do Trabalho, firmando a competência material da Justiça obreira para julgar relações de trabalho decorrentes da exploração sexual infantojuvenil:
[...] 1. EXPLORAÇÃO SEXUAL COMERCIAL INFANTOJUVENIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA AJUIZADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. PRETENSÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS COLETIVOS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO.

Os agravantes alegam que, “no caso dos autos, nem mesmo de longe se visualiza qualquer relação de trabalho”. Afirmam que “bem mais próxima das relações de consumo encontram-se as ‘relações mercantis de cunho sexual’”. Apontam violação do art. 114, I, VI e IX, da Constituição Federal. [...] No plano ‘concreto’, também reafirmo a competência da Justiça do Trabalho, após a instrução do feito.

O que se verificou, data venia, não foram relações sexuais de consumo, mas típicas e ilícitas formas de exploração do trabalho sexual infantil da mulher, em condições análogas às de escravas.
O Ministério do Trabalho e Emprego incluiu a atividade de prestação de serviços sexuais no Catálogo Brasileiro das Ocupações, definindo-a, consequentemente, como ocupação, sob o código 5198-05, reconhecendo, o Poder Público, a prostituição como trabalho.


Os litígios dela decorrentes, notadamente aqueles que envolvem a exploração do trabalho sexual infantil, por óbvio, atraem a competência da Justiça do Trabalho.


A Convenção da OIT - Organização Internacional do Trabalho - n. 182, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto 3.597/2000, em seu artigo 3°, alínea ‘b’, é taxativa a respeito:


Art. 3º - Para os fins desta Convenção, a expressão as piores formas de trabalho infantil compreende:

A - omissis
B - utilização, demanda e oferta de criança para fins de prostituição, produção de material pornográfico ou espetáculos pornográficos;
Portanto, a legislação brasileira, ao incorporar a Resolução da OIT, indica como de ‘trabalho’, e não como de ‘consumo’, a exploração da prostituição infantil, o que já atrai a competência da Justiça do Trabalho, senão pelo inc. I, mas também pelo inc. IX do art. 114 da CF”.
A Convenção 182 da OIT, aprovada pelo Decreto Legislativo 178/99 e promulgada pelo Decreto 3597/2000, conceitua, em seu art. 3º, “b”, a utilização, o recrutamento ou a oferta de crianças para a prostituição como uma das piores formas de trabalho infantil.
A referida convenção, que trata sobre direitos humanos, foi ratificada antes da Emenda Constitucional n. 45/2004 – e, em decorrência, sem a observância do iter previsto no art. 5º, § 3º, da Constituição Federal. Assim, ingressou no ordenamento jurídico pátrio com status de norma supralegal - hierarquia superior, inclusive, àquela ostentada pelo Código de Defesa do Consumidor, cuja aplicação os agravantes postulam -, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal ao julgamento do RE 466.341-SP (DJe 05.06.2009).
Nas palavras do Ministro Gilmar Mendes:

“Em termos práticos, trata-se de uma declaração eloquente de que os tratados já ratificados pelo Brasil, anteriormente à mudança constitucional, e não submetidos ao processo legislativo especial de aprovação no Congresso Nacional, não podem ser comparados às normas constitucionais. Não se pode negar, por outro lado, que a reforma também acabou por ressaltar o caráter especial dos tratados de direitos humanos em relação aos demais tratados de reciprocidade entre os Estados pactuantes, conferindo-lhes lugar privilegiado no ordenamento jurídico. [...] Importante deixar claro, também, que a tese da legalidade ordinária, na medida em que permite ao Estado brasileiro, ao fim e ao cabo, o descumprimento unilateral de um acordo internacional, vai de encontro aos princípios internacionais fixados pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, a qual, em seu art. 27, determina que nenhum Estado pactuante ‘pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado’. Por conseguinte, parece mais consistente a interpretação que atribui a característica de supralegalidade aos tratados e convenções de direitos humanos. Essa tese pugna pelo argumento de que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade. Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana”.


Nesse contexto, em que norma com status supralegal estabelece que há uma relação de trabalho na odiosa e repugnante exploração sexual infantojuvenil, é forçoso concluir pela competência desta Justiça Especializada para julgar a presente ação civil pública, em que postulado o pagamento de indenização por dano moral coletivo decorrente dessa exploração, nos moldes do art. 114, I e IX, da Constituição Federal:


“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:

I - as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
[...]
IX - outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei”.

Além dessa questão relativa ao ingresso da Convenção 182 da OIT no ordenamento jurídico pátrio, destaca-se que é possível extrair da própria definição de exploração sexual comercial de crianças e adolescentes a sua natureza laboral.


Com efeito, a exploração sexual comercial infantojuvenil “refere-se ao processo de tirar proveito sexual de pessoas com menos de 18 anos. A utilização de crianças ou adolescentes como objeto sexual ocorre com uma relação de exploração de trabalho (formalizado ou não). Este é um aspecto que diferencia a exploração sexual comercial do abuso sexual, quando a relação de mercado (sexo como valor de troca) não existe” (Exploração sexual comercial de crianças e adolescentes e tráfico para os mesmos fins: contribuições para o enfrentamento a partir de experiências em Corumbá-MS. Anamaria Santana da Silva, Ester Senna, Mônica de Carvalho Magalhães Kassar, organizadores. Brasília: OIT, 2005, p. 36). Na mesma linha é a definição aprovada no I Congresso Mundial contra a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, realizado em Estocolmo, em 1996: “a exploração sexual de crianças e adolescentes é uma violação fundamental dos direitos infanto-juvenis. Compreende o abuso sexual por adultos e a remuneração em espécie à criança, ao adolescente, a uma terceira pessoa ou várias. A exploração sexual comercial de crianças e adolescentes constitui uma forma de coerção e violência, que pode implicar o trabalho forçado e formas contemporâneas de escravidão”.

Tratando-se, pois, de atividade sexual explorada comercialmente por terceiros, mediante remuneração, resta caracterizada a relação de trabalho - trabalho forçado, diante do vício de consentimento, ilícito e degradante, mas trabalho.

Nesse sentido, Maria Lilian Leal de Souza e Mirella D’Arc de Melo Cahú Arco-verde lecionam que “não há como retirar do conceito geral de trabalho quando uma criança ou adolescente é submetido à realização de serviços de ordem sexual a outro, que se beneficia do serviço prestado, mediante pagamentos de qualquer espécie. O que qualifica esse tipo de relação como de exploração sexual é que no caso em concreto não podemos falar numa situação de igualdade entre os sujeitos envolvidos de forma a termos uma livre manifestação de vontade. Especificamente porque em um dos polos da relação temos uma criança ou adolescente, muitas das vezes em premente necessidade de obter condições materiais para sobrevivência e, ainda, estimulado pelos pais que se beneficiam do pagamento dos serviços” (Criança, adolescente e trabalho. Andrea Saint Pastous Nocchi, Gabriel Napoleão Velloso, Marcos Neves Fava, organizadores. São Paulo: LTr, 2010, p. 218).

Registre-se, ainda, que não há como considerar a exploração sexual de crianças e adolescentes como uma relação de consumo, sob pena de afronta a princípios constitucionais como o da dignidade da pessoa humana. Ademais, conforme destacado por Enoque Ribeiro dos Santos, “em se tratando de relações sexuais, ou do sexo em si, não há falar em relação de consumo, pois na seara deste campo do Direito, o consumidor, ou seja, aquele que adquire o produto para sua fruição, prazer e satisfação, é que deve ser protegido (Princípio da Vulnerabilidade), ocorrendo uma inversão da lógica, pois a criança ou adolescente é que é o explorado. Dessa forma, o sexo jamais pode ser visualizado como objeto de uma relação de consumo” (Enfrentamento à exploração sexual-comercial infanto-juvenil. Antonio de Oliveira Lima, Cicero Rufino Pereira, Enoque Ribeiro dos Santos, organizadores; Rafael Dias Marques, coordenador. São Paulo: LTr, 2012, p. 08).

Por fim, a ilicitude do objeto é obstáculo ao reconhecimento de vínculo de emprego, não afastando, contudo, a competência da Justiça do Trabalho. A respaldar esse entendimento, rememoro que são inúmeras as decisões de mérito proferidas por este Tribunal em relação à prestação de serviços concernentes ao jogo do bicho (v.g. E-RR-70700-05.2006, SDI-I, Relator Ministro Carlos Alberto Reis de Paula, DJ 09.05.2008; E-RR-724600-84.2002.5.06.0906, SDI-I, Relatora Ministra Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, DJ 18.04.2008; e E-RR-501541- 94.1998.5.21.5555, SDI-I, Relatora Ministra Maria de Assis Calsing, DEJT 09.11.2007), tendo sido editada, inclusive, acerca da matéria, uma Orientação Jurisprudencial (“É nulo o contrato de trabalho celebrado para o desempenho de atividade inerente à prática do jogo do bicho, ante a ilicitude de seu objeto, o que subtrai o requisito de validade para a formação do ato jurídico” – OJ 199/SDI-I/TST). Resta ileso, assim, o art. 114, I, VI e IX, da Constituição Federal. Nego provimento. (Grifos nossos).[10]

Como se vê a partir dos julgados acima transcritos, a jurisprudência trabalhista caminha pela competência da Justiça Laboral e pelas repercussões trabalhistas decorrentes da exploração sexual de crianças e adolescentes. Em regra, as condenações, fruto da atuação do Ministério Público do Trabalho em ações civis públicas contra os exploradores, têm como desfecho a concessão da tutela inibitória para prevenir novos ilícitos e indenização pelos danos coletivos extrapatrimoniais ocasionados em decorrência da exploração sexual infantojuvenil.

E de fato. A exploração sexual infantojuvenil, que se constitui em violência sexual contra crianças e adolescentes, resulta em lesão a direito difuso, uma vez que atinge toda a sociedade. Configura-se, inquestionavelmente, como dano moral coletivo, competindo ao Ministério Público do Trabalho o dever de buscar a sua reparação bem como a abstenção dessa abominável conduta, com fundamento no art. 227, caput e § 4º; art. 83, III e V, da Lei Complementar n. 75/1993; art. 81, incisos I e II, da Lei n. 8.078/1990; art. 1º, caput e inciso IV, e art. 3º da Lei n. 7.347/1985; e art. 186 c/c o art. 927 do Código Civil.

Entretanto, a reparação social não se exaure no pagamento de indenização pelo dano extrapatrimonial coletivo, uma vez que resulta também em gravíssima lesão a direito individual indisponível. É essencial, portanto, a condenação do(a) agressor(a) também à reparação individual da vítima.

Nesse sentido, a Lei n. 13.431/2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, dispõe:
Art. 5º A aplicação desta Lei, sem prejuízo dos princípios estabelecidos nas demais normas nacionais e internacionais de proteção dos direitos da criança e do adolescente, terá como base, entre outros, os direitos e garantias fundamentais da criança e do adolescente a:


[...]
XII - ser reparado quando seus direitos forem violados [...]. (BRASIL, 2017).
Trata-se – a norma acima – de previsão legislativa corolário do princípio da proteção integral de crianças e adolescentes, em consonância com a Constituição Federal e com esteio nos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Dessa maneira, ainda que não seja admitida a existência do vínculo empregatício ou mesmo – e sobretudo – nesses casos, o pagamento da indenização pelo dano moral individual trabalhista é medida que se impõe diante da evidente violação de direitos fundamentais.

Ademais, além dos danos morais, há a possibilidade de danos materiais diante dos prováveis prejuízos ou perdas infligidas ao patrimônio corpóreo da vítima. Como exemplo, em muitos casos, a conduta criminosa resulta em doenças sexualmente transmissíveis (DST), algumas sem possibilidade de cura e que exigirão tratamento médico ao longo de toda a vida da vítima. Não é raro também o comprometido do aparelho reprodutor da vítima, dada a submissão em idade precoce à atividade sexual, situação que dá origem a dano material ante a lesão da integridade física. Inegável, ainda, a possibilidade da ocorrência de psicopatologias e até de transtornos psiquiátricos decorrentes das situações de exploração, o que pode resultar em danos psíquicos e doenças psiquiátricas graves, como, por exemplo, depressão, ideação suicida, fobias agudas, ansiedade, dependência química, entre outros, a exigir custeio de tratamento médico adequado.

Decerto que a caracterização do dano material, ao contrário do dano moral, que é presumido, depende de prova concreta de sua ocorrência. Entretanto, é inegável que todas essas hipóteses de dano afetas ao trabalho infantil estão na esfera trabalhista, já que decorrem da relação laboral de exploração sexual da criança e do(a) adolescente.

4 Conclusão

Em suma, na exploração sexual de crianças e adolescentes, há possibilidade de repercussões trabalhistas em virtude da relação de trabalho em sentido lato ou da relação de emprego.
Diante do que consta no art. 114 da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004, a competência jurisdicional é da Justiça do Trabalho para apreciar as ações judiciais decorrentes dessas condutas. O Ministério Público do Trabalho é o ramo do Ministério Público brasileiro com atribuição para atuar tanto na esfera extrajudicial quanto perante a Justiça do Trabalho nos casos de configuração de exploração sexual de crianças e adolescentes, forma de trabalho ilícita e degradante.

A responsabilização trabalhista pode incluir o pagamento de verbas decorrentes da relação de emprego, caso seja constatada pela situação concreta, indenização moral individual e coletiva, sem prejuízo de eventuais reparações por danos materiais ocasionados pela conduta ilícita.

A competência da Justiça do Trabalho e a atribuição do MPT não excluem ou tampouco se sobrepõem à jurisdição ou à atuação de outros ramos do Poder Judiciário e do Ministério Público. Na realidade, há uma soma de competências e atribuições das instituições e dos órgãos responsáveis por tratar e apreciar as diversas e respectivas repercussões (cíveis, penais e trabalhistas) que decorrem da exploração sexual de crianças e adolescentes, visando à reparação integral da vítima.

Confira a publicação completa.

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Referências:

BRASIL. Decreto n. 10.088, de 5 de novembro de 2019. Consolida atos normativos editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem sobre a promulgação de convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho - OIT ratificadas pela República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 215, p. 12, 6 nov. 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/d10088.htm. Acesso em: 20 mar. 2022.

BRASIL. Lei n. 11.829, de 25 de novembro de 2008. Altera a Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, para aprimorar o combate à produção, venda e distribuição de pornografia infantil, bem como criminalizar a aquisição e a posse de tal material e outras condutas relacionadas à pedofilia na internet. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11829.htm. Acesso em: 21 mar. 2022.

BRASIL. Lei n. 13.431 , de 4 de abril de 2017. Brasília, DF. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13431.htm. Acesso em: 21 mar. 2022.

BRASIL. Polícia Rodoviária Federal. Revista Projeto Mapear 2019-2020, Brasília, 2020. Disponível em: https://www.childhood.org.br/childhood/publicacao/mapear2019_2020%20(1).pdf. Acesso em: 20 jan. 2021.

DA SILVA, Barbosa Rodrigo. Jogo do bicho: caracterização da relação de emprego. 2011. Monografia (Bacharelado em Direito) – Faculdade de Ciências Jurídicas e de Ciências Sociais, Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2011. Disponível em: https://repositorio.uniceub.br/jspui/bitstream/123456789/424/3/20664354.pdf. Acesso em: 20 mar. 2022.

DE MORAES E SILVA, Sofia Vilela. Violência sexual contra crianças e adolescentes e eficácia social de direitos fundamentais: subsídio à formulação de políticas públicas para o município de Maceió. 2009. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2009.

SOBRINHO, Zéu Palmeira. O combate ao trabalho infantil no tráfico de drogas: pela construção de alternativas para além do estado neoliberal. In: RAMOS, Ana Maria Villa Real Ferreira Ramos et al. (org.). Coordinfância: 20 anos de luta pela efetivação dos direitos das crianças e dos adolescentes. Brasília: Ministério Público do Trabalho, 2020. p. 569-587. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1c4eJZ1jnVY7z9zSOnQPIIT79BmYFNR_u/view. Acesso em: 20 mar. 2022.

Notas:


[1] As autoras, juntamente com outros membros e membras do Ministério Público do Trabalho, integram Grupo de Trabalho (GT) da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Coordinfância) para o enfrentamento da exploração sexual de crianças e adolescentes. A proposta do GT, que está em fase conclusão, é atualizar, revisar e complementar o Plano Operacional de Enfrentamento à Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes do Ministério Público do Trabalho (Plano ESCCA). Este artigo foi inspirado em estudos e textos desenvolvidos no âmbito do Grupo de Trabalho.

[2] Em 1º de junho de 1999, a Convenção sobre Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e Ação Imediata para sua Eliminação (n. 182), juntamente com a Recomendação n. 190, foram unanimemente adotadas pela Conferência da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O Brasil ratificou a Convenção n. 182 e a Recomendação n. 190 em 12 de setembro de 2000, através do Decreto n. 3.597/2000. O Decreto n. 3.597/2000 foi revogado pelo Decreto n. 10.088/2019, que unificou em um único diploma normativo as ratificações dos tratados e convenções internacionais assumidos pelo Brasil.

[3] A Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), instituída pela Portaria Ministerial n. 397, de 9 de outubro de 2002, tem por finalidade a identificação das ocupações no mercado de trabalho.

[4] Disponível em: https://www.ocupacoes.com.br/cbo-mte/519805-profissional-do-sexo. Acesso em: 12 nov. 2020.

[5] O texto transcrito foi extraído da Revista Mapear, produzida pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) em parceria com a Childhood Brasil e outras instituições, inclusive o Ministério Público do Trabalho. A cartilha está em sua 8ª edição e, além de abordar o tema, traz um levantamento dos pontos vulneráveis à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (ESCA) nas rodovias federais brasileiras.

[6] A palavra comércio está entre aspas, já que o termo não é adequado para adjetivar a situação em testilha. A utilização da mão de obra e de seres humanos como se coisas ou mercadorias fossem será sempre uma relação exploratória de trabalho, e não uma relação comercial.

[7] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Orientação Jurisprudencial da SDI 1
n. 199. Jogo do Bicho. Contrato de Trabalho. Nulidade. Objeto Lícito. DEJT divulgado em 16, 17 e 18 nov. 2010. Disponível em: https://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/OJ_SDI_1/n_s1_181.htm. Acesso em: 20 mar. 2022.

[8] BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região (Tribunal Pleno). Recurso Ordinário. Processo n. 0047700-79.2013.5.13.0017. Relator: Des. Wolney de Macedo Cordeiro. Publicação: DJe 24 nov. 2015.

[9] BRASIL. Tribunal Regional da 13ª Região (Tribunal Pleno). Recurso Ordinário. Processo n. 01824.2007.027.13.00-0. Relator: Des. Francisco de Assis Carvalho e Silva. Publicação DJe 27 jul. 2010.

[10] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho (1. Turma). Processo n. AIRR-182400-69.2007.5.13.0027. Relator: Min. Hugo Carlos Scheuermann – Publicado: 25.4.2016.

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